Em princípio do século XVII, eu participava dos serviços de uma embarcação francesa, em transporte de pau-Brasil, Fizemos amizade com os índios, e, eu como português de Alentejo, não tive dificuldades para aprender alguns rudimentos da língua indígena. Em razão disso o chefe da tribo, que respondia pelo nome de Aritogogo, dedicava-me especial atenção. Na nossa sexta viagem, o velho índio chamou-me em particular, ministrando-me uma das mais belas lições de filosofia que já recebi em toda a minha vida. Observando-nos a afoiteza em carregar o navio com amadeira preciosa, perguntou-me ele, na linguagem que lhe era familiar:
- Escute, meu amigo, não há lenha em sua terra? É preciso enfrentar o abismo das águas para alimentar o fogo no lar distante?
- Não Aritogogo - respondi, esboçando um sorriso de pretensa superioridade -, a madeira não se destina a fogão. O pau-Brasil fornece tinta para a indústria da Europa. - Mas, para que tanta tinta? - tornou ele, assombrado. - Para tingir a roupa dos brancos - expliquei. - Ah! Vêm buscar a lenha para repartir com o povo - exclamou o cacique -, assim como nós buscamos remédio para os que adoecem e comida para os que têm fome! . . . - Não, não - esclareci -; somos empregados de um industrial. Toda a carga pertence a um só homem. Trata-se de poderoso negociante de tintas, na França. Aritogogo arregalou os olhos, espantado, e indagou: - Que deseja esse homem com tantos paus e tanta tinta? - Fazer fortuna - respondi -, alcançar muito dinheiro, ter muitas casas e muitos servidores. . . O chefe índio sacudiu a cabeça e tornou a perguntar: - Mas esse homem nunca morrerá? Ri-me francamente da interrogação ingênua e observei: - Morrerá, por certo. - Então? - disse o índio - se ele vai morrer, como nós todos, deve ser tolo em procurar tanto peso para o coração. Tentei corrigir-lhe a concepção, obtemperando: - Esse homem, Aritogogo, está preparando o futuro da família. Naturalmente pretende legar aos filhos uma grande herança, cercá-los de fortuna sólida. . . Foi aí que o cacique mostrou um gesto singular de desânimo, e falou, em tom grave: Ah! Meu branco, vocês estão procurando enganar a Deus. As tribos pacíficas, quando começam a cogitar desse assunto, esbarram nas guerras em que se destroem umas às outras. O único ser, que pode legar uma herança legítima aos nossos filhos, é o dono invisível da terra e do Céu. O sol, a chuva, o ar, o chão, as pedras, as árvores, os rios são a propriedade de Deus que, por ela, nos ensina as suas leis. Retirar os nossos filhos do trabalho natural é pretender enganar o Eterno. Como podem os Brancos pensar nisso? - Nesse momento, o comandante chamou-me ao posto e despedi-me de Aritogogo, para não mais tornar a vê-lo. - Desde então, modifiquei minha idéia de ganho, compreendendo onde estão o supérfluo e o necessário, a previdência e o desperdício, a sobriedade e a avareza, a reserva justa e a ambição criminosa. A lição de Aritogogo incorporou-se ao meu espírito para sempre. Com ela, aprendi que dominar o dinheiro e aproveitá-lo a bem de todos, socorrendo necessidades e distribuindo bom ânimo, é obra do homem espiritualizado; mas, deixar-se dominar pelo ouro, na preocupação de ganho transitório, não reparando meios para atingir os fins, açambarcando direitos de outrem e valendo-se de todas as situações para rechear os cofres e multiplicar os lucros, tão-somente para manter a superioridade convencional, em prejuízo da consciência, é obra do homem vulgar, escravizado aos gênios perversos da tirania. (Livro Pontos e Contos . Humberto de Campos. Psicografado por Chico Xavier)